Para os estudiosos da genética, as diferenças da cor da pele nas raças humanas são insignificantes. Mas é estarrecedor vermos sua capacidade de produzir, como nas políticas do apartheid, algumas das páginas mais cruéis da história da humanidade
Sheila Lobato
"Operários", óleo sobre tela de Tarsila do Amaral,
Centenas de milhares de pessoas lotam a praia de Copacabana. É domingo e faz um belo dia de sol. Caminhar em linha reta é impossível. E a experiência de andar em ziguezague entre as pessoas e os guarda-sóis tem algo de único no mundo. Não tanto pela massa de gente, ou pelo Cespaço inexistente para abrir o guarda-sol. Caminhar ali é uma experiência única porque, ao se olhar para a paisagem humana, a primeira descoberta que o turista, brasileiro ou estrangeiro, faz é sobre a cor das pessoas.
Há loiras que parecem nórdicas, morenas tropicais, brancos caucasianos, negros retintos, mulatos de várias tonalidades, gente de pele acobreada e outros ainda de pele cor-de-oliva. Todos com pares de olhos de muitas formas e matizes; cabelos que vão do liso ao cacheado, finos ou grossos, do loiro ao negro, do castanho-escuro ao claro. De todas as cores do Rio de Janeiro, as daquela gente são as que mais ficam na memória.
Após 508 anos de miscigenação, os cariocas - os brasileiros, de um modo geral - não têm uma cor, mas muitas cores. Praias e ruas de qualquer lugar da Europa, América do Norte, Ásia ou África sempre mostram ao menos uma cor dominante. No Brasil, em especial no Rio de Janeiro, não é assim.
Segundo o Censo de 2007, a escala de cores da pele dos brasileiros vai a 144 tonalidades diferentes. Duzentos anos atrás, éramos outro país. A cor negra caracterizava 54% da população. Hoje, essa proporção é de somente 6%, enquanto quase a metade da população é de cor mista. "Entre o branco e o negro, a maioria não é nem uma coisa nem outra", escreve a bióloga e jornalista italiana Barbara Bernardini.
Outra descoberta é a confirmação, "in natura", do que a biologia vem descobrindo nos últimos anos. A cor da pele nas diversas etnias não se deve somente a um mecanismo de resistência aos raios ultravioleta do sol, mas a duas vitaminas presentes na pele de todo mundo - a D e o ácido fólico, do grupo B. As duas reagem de formas opostas aos raios solares: enquanto a vitamina D se multiplica, o ácido fólico degrada-se rapidamente quando a pele é exposta ao sol. Ambas, porém, são extremamente necessárias à vida humana e isso obrigou a natureza a agir a favor das duas. Por um lado, facilitando a produção de vitamina D e, por outro, dificultando a perda de ácido fólico sob a luz solar. A cor da pele faz essa proeza.
Quanto mais melanina, mais escura é a pele - mas por que mais melanina? Porque, sob o sol forte das regiões equatoriais, a cor escura protege o ácido fólico sem impedir a produção de vitamina D pelos raios UV do sol. Inversamente, quanto menos melanina, mais clara é a pele, e a razão disso é que, nas regiões onde a insolação é menor, o ácido fólico não precisa da mesma proteção, mas a pele tem de produzir a mesma quantidade de vitamina D. Por isso, os habitantes do norte do planeta são majoritariamente brancos.
A PRODUÇÃO DE VITAMINA D pelos raios solares e a manutenção dos níveis de ácido fólico no organismo são vitais para a geração de fetos humanos sadios. Sem essas duas vitaminas em equilíbrio, as chances de malformações nos embriões são muito grandes. Em resumo, a cor da pele humana se deve a um ajuste natural cujo objetivo é assegurar a procriação de seres normais - a perpetuação da espécie.
A conclusão que se impõe é uma só: a cor tem mais a ver com a continuidade do gênero humano sob diferentes condições de insolação do que com sua raça. Sem a cor escura, seria impossível o surgimento da vida humana, 2 milhões de anos atrás, na África equatorial.
A ESCALA DE CORES DA PELE DOS BRASILEIROS VAI A 144 TONALIDADES DIFERENTES. DUZENTOS ANOS ATRÁS, ÉRAMOS OUTRO PAÍS. A COR NEGRA CARACTERIZAVA54 % DA POPULAÇÃO. HOJE, ESSA PROPORÇÃO É DE SOMENTE 6%
Os Australopithecus, nossos mais prováveis ancestrais, tinham a pele clara, mas eram cobertos de pêlo escuro, que os protegia do sol, do calor e do frio.
Era uma cobertura térmica natural. Quando um ramo dessa espécie de chimpanzé - o Australopithecus erectus - começou a andar em pé, seu cérebro cresceu, caçar tornou-se uma atividade muito mais complexa e o sistema de refrigeração precisou mudar. Os pêlos caíram e deram lugar a glândulas sudoríparas, muito mais eficientes para refrescar o corpo durante as longas jornadas de caça. Mas a pele nua e clara passou a sofrer os efeitos do sol e aí, entre três e dois milhões de anos atrás, desenvolveu-se o mecanismo que escureceu a pele para, ao mesmo tempo, protegê-la e garantir a posteridade.
A cor negra é uma conquista da natureza, uma das mais importantes na história da evolução humana. "O esforço de seleção foi enorme, pois a síntese de melanina necessária para produzir essa cor só é possível pela ação combinada de uma centena de genes, a maioria ainda não identificada", diz a bióloga Barbara Bernardini. "Foi o único modo de permitir o nascimento de uma prole numerosa e sadia, apesar dos efeitos contínuos dos raios UV", completa.
"A melanina não é um filtro genérico, mas um meio desenvolvido para proteger ao máximo a pele de um certo tipo de raio UV que atinge o sangue e destrói o ácido fólico nos vasos sangüíneos da epiderme", explica a bióloga e antropóloga Nina Jablonski, da Penn State University, dos Estados Unidos. "Esse ácido atua na síntese do DNA. Sem ele, os espermatozóides não se formam corretamente e o feto gerado terá gravíssimos defeitos congênitos, como anencefalia e atrofia da coluna vertebral."
Esse tipo de malformação era responsável por 15% das mortes pré-natais até que, em 1989, a australiana Fiona Stanley, do Medical Research Council, descobriu que, adicionando ácido fólico à dieta de mulheres grávidas, podia-se prevenir 70% destes defeitos.
A COR DA PELE NAS DIVERSAS ETNIAS NÃO SE DEVE SÓ A UM MECANISMO DE RESISTÊNCIA AOS RAIOS ULTRAVIOLETA DO SOL, MAS A DUAS VITAMINAS PRESENTES NA PELE DE TODOS - A D E O ÁCIDO FÓLICO
Foi só há 115 mil anos que os seres humanos começaram a se deslocar para latitudes acima do equador, em direção a terras onde o sol se tornava tão ameno que a pele escura não representava mais uma vantagem, mas um obstáculo à produção de vitamina D. Num processo de alguns milhares de anos, a pele "sintonizava" a exata quantidade de raios UV do ambiente e ajustava a melanina. E se grupos de pele já clareada voltassem a latitudes semelhantes às da origem ancestral, tornavam-se novamente escuros. Exemplo disso se deu com os aborígenes australianos, tão escuros quanto os africanos, mas geneticamente descendentes dos asiáticos, de pele clara.
"A vitamina D não serve somente para fixar o cálcio nos ossos. É indispensável ao sistema imunológico, ao sistema nervoso e ainda condiciona o ciclo menstrual. A forte carência de vitamina D não é compatível com a vida, muito menos com a reprodução", diz Nina.
Coube a outro cientista da mesma universidade, o também biólogo Keith Cheng - que se dedica ao estudo do câncer no nível celular - explicar geneticamente a passagem da cor negra para a branca na pele dos europeus. O responsável foi uma mutação do gene SLC24A5, que regula a quantidade de melanina no organismo.
"É possível estimar que a mutação ocorreu há apenas 15 mil anos e se difundiu rapidamente por todo o Velho Mundo", diz Cheng. "Mas ela se deu somente nos europeus, pois os brancos asiáticos, como os japoneses e chineses, conservaram o gene africano, chegando ao mesmo resultado que os europeus por outro caminho genético", completa. Outras variações genéticas, associadas aos raios UV e a uma dieta alimentar mais ou menos rica em vitamina D, produziram as diversas tonalidades de branco.
O gene que descolore a pele é capaz de dar uma insólita lição à humanidade. "Essa mutação", diz o professor Cheng, "foi determinada pela variação de uma única letra do código genético. Somente uma letra", ele enfatiza. A observação é importante, anota a bióloga Barbara Bernardini, porque o DNA humano contém cerca de 3 milhões de letras.
A ORIGEM DA COR NAS RAÇAS HUMANAS AO MICROSCÓPIO É TÃO INSIGNIFICANTE QUANTO ESTARRECEDORA, POIS FOI CAPAZ DE PRODUZIR POLÍTICAS COMO O APARTHEID
"A diferença de cor de um italiano para um senegalês é causada por uma molécula milhões de vezes menor que um milímetro", ela acrescenta. E conclui seu testemunho com uma constatação irretorquível: a origem da cor nas raças humanas é tão insignificante ao microscópio quanto estarrecedora, por vermos como diferenças tão minúsculas foram capazes de produzir, como nas políticas do apartheid, algumas das páginas mais cruéis da história da humanidade.
Revista Planeta
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